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13 de março de 2010

Impetuoso

Nada parecia detê-lo.

Lembro-me como se tivesse sido ontem. Conduzia-se sem medo. Transbordando segurança, ele não se intimidava com nada em volta. Foco total. Nada mais o interessava. Certamente não pestanejava, pois o tempo urgia. E penetrava com uma virilidade impressionante, mas sempre com cuidado. Que frio na barriga.

Pilotava ele uma ambulância em pleno horário de pico na via expressa. Foi alcançando distâncias em poucos segundos como eu nunca houvera visto.

Fantasias me assolaram. Como devia ser aquele homem?...

2 de março de 2010

Esta crueldade nossa...


A crueldade sem fim que cada um traz em si
de enterrar pelo peito os profundos abismos
que levamos ocultos na vida interior...

A crueldade sem fim que ao nos sentir sedentos
nos leva a contemplar lagos de encantamento
perdidos na alvorada de um celeste fulgor.

Crueldade que se esconde em cada coração,
faz arder os espasmos da mais pungente dor
ou revive nas asas da meditação...

Noite de 20 de julho de 1919

Pablo Neruda - in Cadernos de Temuco
Trad Thiago de Mello

1 de março de 2010

Em Lima

Pedira a ele uma omelete. Enquanto ele a prepararia, fui pegar um pão. Quando voltei, ele estava preparando uma. Deitou o ovo batido. Acrescentou a cebola, o tomate, o fungui. E o presunto. Eu tinha pedido para não colocar o presunto. Ah, não deve ser meu. Mas aí ele olhou para mim: “Ah, era sin ham!..”. “Tudo bem, não tem problema”, comentei eu, pois já havia outros hóspedes esperando pelos seus. Ele dobrou a omelete e fez que iria descartá-lo. Reforcei que estava bem. Ele me pediu para esperar que a entregassem na minha mesa. “Está bem.” Fui para lá e comecei a me servir. Logo veio minha omelete. Ao cortá-la, percebi que não havia presunto. Surpresa e feliz, virei-me para ele, lá longe. Ele olhou para mim de soslaio. Decerto, esperava que o visse. Com minhas mãos e cabeça, disse que não precisava ter feito aquilo. Ele lançou um sorriso tímido, mas satisfeito. Agradeci, baixando minha cabeça.

Fiquei feliz. Comecei bem o dia. Aquele sorriso gostoso me encantara. Ele fez aquilo por que estávamos num hotel cinco estrelas, num país de terceiro mundo? Ou por que ele é um trabalhador simples e correto? Ou simplesmente por que ele é uma boa pessoa? Ou mais simplesmente por que era o que se esperava que ele fizesse??... Não importava. Ficáramos ambos felizes, certamente.

Na manhã seguinte torci para que ele estivesse de novo no mesmo posto. Sim! “Por favor, lo mismo de ayer!” Com um sorrisinho, reforcei que era sem presunto. Fui pegar o pão. Voltei e ele estava prepararando dois. Para um deles, ele levou a colher com presunto, mas olhou para mim furtivamente, e parou. Com um sorriso no canto de seus lábios prosseguiu seu labor. “Muchas gracias!”, disse eu muito feliz, e me fui com minha omelete.

Lá fora, chegou a van que me levaria ao aeroporto. Pontualmente estávamos eu e uma argentina. Mas um terceiro hóspede não chegava. Vinte minutos depois, comentaram que ele “Ya vién”, pois “estava comprando algo pessoal” (!!). Não façam isso comigo! Detesto que me façam esperar por motivo idiota. Felizmente disseram que era para partirmos sem ele. Mas, logo no primeiro quarteirão, pediram para voltar, para capturar o retardatário. “Perdón!” disse ele sem o menor constrangimento. Ambas nos olhamos incrédulas e nos mantivemos caladas.

Que decepção! O mesmo local abrigando pessoas tão diferentes... Bem, mas nem soubemos de onde é aquele infeliz.